quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Entrevista com Antônio Miranda, Consultor de projetos cicloviários e Presidente da UCB - UNIÃO DOS CICLISTAS DO BRASIL


Para realizar a seguinte entrevista com Antônio Miranda, Presidente da UCB e consultor em Planejamento e Projetos Cicloviários, por motivos logísticos, conversamos através de questionário enviado por correio eletrônico (e-mail). Desta maneira, para não ficar um bate-papo impessoal, coletamos comentários de amigos e pessoas ligadas à Miranda para elaborarmos uma introdução sobre o recém-eleito presidente da UCB. Sendo assim, Giselle Xavier, José Carlos Aziz Ary e Renata Falzoni ajudaram a descrever a personalidade e profissionalismo de um dos maiores especialistas sobre política cicloviária do Brasil.

"Conheci o Miranda em 1975, quando cheguei ao GEIPOT - Grupo de Estudos de Integração da Política de Transportes. Já havia na empresa um grupo de jovens técnicos formados há pouco tempo. Suas idades giravam em torno de 25 anos e Miranda era um deles. Fizemos naquele ano o Curso de Especialização em Transportes Urbanos, que o órgão ministrava para seus próprios técnicos", lembrou José Carlos Aziz Ary. "Tivemos a oportunidade de trabalhar juntos a partir do início de 1976, por compartilharmos o sonho de dotar as nossas cidades de condições seguras e agradáveis para os ciclistas. Começamos então a elaborar um estudo, autorizados que fomos pelo próprio presidente do GEIPOT, Cloraldino Soares Severo, com quem tivemos, no final de 1975, uma conversa tensa sobre o assunto. Iniciamos por uma viagem a São Paulo, Curitiba e Joinville e, nos seis meses seguintes, canalizamos nossos esforços em busca desse objetivo. Por fim, foi editado o primeiro manual das bicicletas que se chamou de "Planejmen to Cicloviário: uma Política para as Bicicletas". O documento surpreendeu pelo inusitado e ousadia de suas propostas, em confronto com a mentalidade ‘rodoviarista' que predominava (e predomina) em nosso país. Mas, sem dúvida, muito contribuiu para o seu sucesso a qualidade gráfica, cujo responsável era o Miranda. Embora ele integrasse simultaneamente a equipe dos estudos de transportes urbanos de Brasília, dividia seu tempo, esmerando-se nos desenhos do Manual", revela Aziz Ary. Ainda na visão de Aziz Ary, Antônio Miranda carrega outras qualidades que o credenciam e capacitam a ocupar o cargo para o qual foi eleito. "Miranda, arquiteto sobejamente conhecido e membro do cicloativismo, desde aquela época dedicou-se ao assunto e hoje é o mais procurado e gabaritado projetista, sobretudo quando se trata da concepção e detalhamento de infraestrutura cicloviária. Possui um temperamento inquieto e um espírito crítico muito aguçado, que o levava frequentemente a discordar dos chefes, não se conformando facilmente com as decisões ou orientações recebidas. Era contundente em suas opiniões e, às vezes, ácido ao se referir àqueles de quem não gostava, especialmente superiores hierárquicos. Sua paixão pelas bicicletas transparece ainda mais na sua forma contundente de se expressar, em diálogo coloquial ou quando discorre sobre o tema em suas palestras. Além de tudo, somos compadres, pois ele me concedeu a honra de ser padrinho de sua filha Moana", finaliza Aziz.

Falar de Antônio Miranda é revisitar a história da política cicloviária do Brasil. "De 1998 para cá, convivo regularmente com Miranda e nos encontramos regularmente aqui em Florianópolis (SC), pois ele, vez por outra, presta consultoria para o IPUF (Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis), e nos encontramos nos eventos do Bicicleta Brasil - fizemos parte do processo de criação do programa", relembra Giselle Noceti Ammon Xavier, doutoranda em Ciências Humanas, professora efetiva da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), coordenadora do Grupo CICLOBRASIL e fundadora da VIACICLO (Associação dos Ciclousuários da Grande Florianópolis). "Miranda, que eu saiba, sempre foi ativista. Nos tempos de ditadura, ele era de esquerda (quando ainda existia esquerda). Miranda é poeta e sua paixão pela bicicleta sempre foi meio ‘poetisada'. Durante nossas primeiras conversas, ele fantasiava possíveis campanhas de promoção ao uso da bicicleta. Miranda é um dos ‘culpados' de eu ter insistido em ser cicloativista", destaca.

A jornalista Renata Falzoni, envolvida com a causa há mais de 40 anos, disse o seguinte sobre Miranda: "o Miranda está ocupando um cargo que eu recusei por duas vezes; os motivos de minha recusa são vários, em especial o fato não ter tempo e muito menos energia para assumir mais essa. Estou desatualizada em relação ao que está rolando, conheço apenas um segmento muito pequeno de nossos colegas de luta, apenas os mais antigos. Estou desinteressada dos detalhes. O que me interessa é o macro, o conceito do cicloativismo e a minha ação, minha colaboração local. Então, eu só tenho que louvar (o fato de) o Miranda ter aceito essa missão, esse desafio - e sem dúvida ele tem perfil, sim, para isso. O fato de ele não ser um cicloativista nos ajuda. O cicloativista é suspeito. Somos - e não pretendo deixar de ser - rotulados como ‘xiitas'. Eu sou suspeita sim. Eu não quero ter de amenizar minhas atitudes ou o meu discurso em público para ganhar ‘idoneidade'. Prefiro ser o que sou. Minha vingança - eu sempre digo - é que não importa quantos de nós prendam ou assassinem nas ruas: continuo a pedalar. Minha idade, a soma de nosso trabalho, os fatos do mundo, me legitimam na medida que o tempo passa. Esse descompromisso para um cicloativista é importante. Por outro lado, o Miranda tem interesses profissionais no tema, e isso é bom. Ele não pode nunca ser classificado de um ‘xiita' e, ao mesmo tempo, é comprometido com a nossa causa. O fato de ser técnico é perfeito, pois os argumentos da ‘canalha motorizada', da ‘gang do petróleo', da ‘turma das CETs', dos ‘políticos das obras faraônicas', dos insustentáveis... Enfim, se diluem frente a simplicidade técnica do texto e didática do Miranda. Ele vence pela sua paciência. É hilário. Sim, poderíamos ter à nossa frente um guerreiro aguerrido, um ‘doente por bikes', mas acho legal termos um pacifista de tom manso, paciente, notório pelo seu conhecimento, um PHD, reconhecido pelos seus estudos, que vence pelo cansaço, pelas longas explanações de detalhes. Tem mais, e o que eu vou falar é polêmico: a UCB nasceu para unir gregos e troianos, nasceu para ser um saco de gatos irritados. Não importa muito o que se faça, a UCB tem que existir, tem que opinar, tem que fazer muito ruído e assinar atos. Perguntas que eu faria ao Miranda: ‘Você não pedala, então por que investe tanto tempo nessa causa? Como foi que caiu nessa? O que te convenceu que a bicicleta é a solução?'", reflete Falzoni. A respostas virão a seguir, mas Giselle Xavier ajudou a esclarecer as dúvidas. "Ele (Miranda) tem pedalado direto em Blu menau (SC). Ele tem usado uma bike dobrável, se não me engano", explica. "Porém, Miranda é sim cicloativista desde os tempos de GEIPOT. Sua paixão pelas bikes, seu lado poeta, seu lado ‘rebelde- alternativo-político-de-esquerda' e sua condição de técnico sênior no planejamento de infraestrutura cicloviária - provavelmente o mais experiente do Brasil - se unem naturalmente, surgindo uma pessoa que é ao mesmo tempo um apaixonado pela bicicleta, pelo movimento social e pelas características favoráveis de praticidade e funcionalidade que a mesma representa dentro dos cenário urbano. A presidência da UCB está muito bem representada", conclui Giselle.

A seguir, confira na íntegra a entrevista com Antônio Miranda.

bike action>> Em média, quantos ciclistas circulam pelas ruas brasileiras?
antônio miranda<< Não existe pesquisa capaz de revelar estes números. Primeiro é preciso entender que o Brasil, há alguns anos, tem mais de 85% das pessoas vivendo em áreas urbanas. Dos 5662 municípios, pelo menos em mais de 1000 deles há cidades com mais de 20 mil habitantes, que requerem um Plano Diretor de Uso do Solo, segundo a Constituição Federal. Mas para pesquisas de tráfego não existe obrigação da sua realização. Portanto, os dados são sempre estimativas, baseadas em dados cruzados. Considerando uma frota brasileira ao redor de 75 milhões de bicicletas e de que as vendas no comércio apontam para cerca de 60% de bicicletas de transporte, poderemos dizer que, diariamente, cerca de 1/3 da frota de bicicletas de transporte realiza ao menos uma viagem - isto corresponderia a 15 milhões de viagens/dia.

ba>> Quantas bicicletas existem no país e como tirá-las da garagem e colocá-las nas ruas?
miranda<< Como disse antes, temos cerca de 75 milhões de bicicletas, contra pouco mais de 43 milhões de veículos motorizados. Para tirá-las da garagem seria importante que o governo fizesse investimentos maciços em infraestrutura para elas. Ou seja, destinando recursos vultosos para construir redes "cicláveis" urbanas, conjugando trechos com ciclovias, ciclofaixas, passeios compartilhados, vias com tráfego acalmado, rotas cicláveis e principalmente milhares de paraciclos e bicicletários para o estacionamento de bicicletas. Isto junto aos grandes pólos geradores de viagens, como mercados, shoppings, rodoviárias, terminais de transportes e grandes equipamentos de serviços públicos, a começar pelas prefeituras, como na adoção de pequenos paraciclos junto ao comércio local.

ba>> Qual é o objetivo com a criação da União dos Ciclistas do Brasil?
miranda<< Criar um canal de voz nacional para os ciclistas, que possa representá-los junto ao governo central, seja junto a Ministérios do Poder Executivo, onde já identificamos interface com pelo menos 12 deles, seja junto ao Congresso Nacional, acompanhando as leis que ora estão em tramitação, seja contra ou favor da bicicleta em nosso país. Também temos o objetivo de atuar junto ao Poder Judiciário, principalmente junto ao Ministério Público, para defender os interesses dos ciclistas, em especial na defesa dos direitos referentes à sua vida, na garantia da sua integridade física. Também constitui importante eixo a ser deflagrado pela UCB o estímulo à formação de associações de ciclistas em todo o território nacional, como associações de rua, de bairro, de região, de município e até mesmo associações de grupos especiais, visando a aumentar a voz em prol de uma mobilidade por bicicleta em todo o território nacional.

ba>> O que de fato pode ser feito, implementado a curto, médio e longo prazos?
miranda<< De início, pretendemos finalizar o processo de registro da associação, que deverá ocorrer até o término de fevereiro de 2009. No curto prazo, pretendemos montar uma agenda de trabalho para 2009, transformando o evento Bicicultura, realizado em novembro, em Brasília (DF), numa atividade anual da instituição. E também realizar uma programação de viagem, qual uma cruzada mesmo, percorrendo todo o país, realizando palestras e estimulando os ciclistas a estarem presentes nestas, as quais terão por objetivo estimulá-los a se organizar para reivindicar medidas voltadas ao provimento de infraestrutura local e a ampliar o número de pedalantes em suas cidades. No médio prazo, fazer visitas a Brasília (DF) e debater com ministérios e parlamentares sobre recursos e leis voltadas à implantação de infraestrutura pró-ciclistas. Também, realizar um novo Bicicultura e eventos em parceria com a ANTP (Associação Nacional de Transportes Públicos). No longo prazo, fazer parcerias com o Instituto Pedala Brasil (IPB), empresas nacionais e internacionais fabricantes de bicicletas e componentes, além de prefeituras "amigas" da bicicleta, visando desenvolver programas localizados, voltados a fomentar o uso da bicicleta em regiões ou municípios específicos do país.

ba>> Durante sua "carreira" de cicloativista, quais foram os principais avanços na questão da bicicleta como mobilidade urbana?
miranda<< Posso citar apenas a produção dos manuais cicloviários realizados pelo GEIPOT e pelo Ministério das Cidades. No entanto, nenhuma cidade ainda pode ser digna de um registro positivo. Os prefeitos, em geral, são ainda muito receosos, temem retirar os privilégios concedidos aos motoristas ao longo de décadas.

ba>> Como os ciclistas de todo Brasil podem colaborar na causa?
miranda<< Acredito que, primeiramente, não deixando de pedalar, apesar dos problemas e dos riscos. Em segundo lugar, ajudando a formação de grupos e pressionando o poder público por melhorias na infraestrutura e na garantia dos direitos constantes no Código de Trânsito Brasileiro.

ba>> Qual é a cidade brasileira que está mais avançada e qual a mais atrasada sobre a questão da bicicleta como meio de transporte?
miranda<< A cidade mais adiantada, considerando os centímetros de infraestrutura por habitante, é Praia Grande, no litoral paulista. A cidade mais atrasada, considerando o seu tamanho e a sua importância para todo o Brasil é São Paulo. Aliás, a capital paulista deveria ter hoje de 2,5 mil km a 3 mil km de ciclovias e outras infraestruturas para a bicicleta. Isso quase corresponde ao total da infraestrutura do nosso país, que está ao redor de 3,5 mil km. E afirmo isso porque temos cidades como Munique (Alemanha), com mais de 1,5 mil km de ciclovias/ciclofaixas e outros caminhos cicláveis. Berlim tem mais de 1 mil km e Paris, quase 500 km. Londres está construindo uma rede que pretende atingir em 2010 cerca de 900 km; Nova York tem mais de 600 km. São Paulo não tem mais do que 35 km, o que é ridículo.

ba>> Na sua opinião, como o governo deveria agir para incentivar o uso do transporte sustentável?
miranda<< Criando um programa nacional com recursos específicos, destinando R$ 1 bilhão para projetos cicloviários. De início, fazer uma parceria com dez capitais e dez cidades de porte médio para implantar um programa destinado a gerar uma mobilidade especial para a bicicleta.

ba>> Diante da crise econômica mundial, explique o papel da bicicleta como solução de transporte urbano.
miranda<< A bicicleta não pode ser colocada como panacéia dos transportes urbanos, como já foi feito nos anos 70, no século passado. Não, a bicicleta pode cumprir um papel intermediário no curto prazo, respondendo, com a adoção de medidas corretas e interligadas, por 5% da mobilidade das pessoas nos grandes centros urbanos. No médio prazo, algumas cidades selecionadas e com mais destaque poderão ter metas de 20% a 30% dos deslocamentos por bicicleta. Com isso, a matriz de mobilidade poderá mudar, ajudando as questões econômicas e ambientais de muitas delas.

ba>> Quais são os passos a seguir para a criação de cidades mais "humanas"?
miranda<< Poderia citar o seguinte: a) mudar o padrão das viagens das pessoas; b) mudar o padrão de organização de nossas comunidades, aproximando nossas exigências e locais de trabalho dos locais de moradia; c) conter o crescimento das grandes cidades realizando importantes investimentos em cidades menores, transformando-as em cidades atrativas e amadas por seus habitantes; d) se possível, promover um êxodo inverso, descongestionando os grandes centros, através da retirada de habitantes para a formação de novas cidades em outros locais do território nacional; e) reconstruir as cidades através de mudança na forma organizacional das cidades, onde a administração deveria se fracionar concedendo mais autonomia à gestão local, através da criação de gestores de bairros ou regiões específicas da cidade; f) diminuir o uso do automóvel drasticamente, como já foi sugerido na década de 80. O ideal seria que todos continuassem com seus carros mas não os usassem. Assim, a economia se manteria ativa, mas não teríamos problemas nas cidades. Mas em verdade, o ideal seria redirecionar o trabalhador brasileiro metalúrgico para outras atividades produtivas. Daqui para frente ficará cada vez mais difícil atingir o mesmo patamar de produção de automóveis obtidos no primeiro semestre de 2008.

ba>> Quais são os melhores modelos internacionais do uso da bicicleta?
miranda<< Houten, na Holanda, é um bom exemplo. A cidade foi inteiramente projetada para dar prioridade para as bicicletas; mas Utrecht, também na Holanda, é fantástica. Munique também é muito boa. Não conheço tantas cidades assim. Mas das que conheço, acho que estas três são bons exemplos.

ba>> Na sua opinião, as pessoas evitam o uso da bicicleta por insegurança ou por discriminação?
miranda<< As duas coisas. A primeira está vinculada à falta de ações do poder público, principalmente no desprovimento de infraestrutura, gerando insegurança naqueles que gostariam de fazer uso da bicicleta mas têm medo. No segundo caso, porque a bicicleta é por excelência o veículo da comunidade mais carente. Bicicleta é hoje um transporte econômico e, como tal, acaba sendo discriminada numa sociedade onde o automóvel ainda é símbolo de prosperidade.

Histórico profissional-político de Antônio Miranda
• Chefe do projeto ETURB-BEL - Estudo de Transportes Urbanos da Região Metropolitana de Belém (PA), de 1977 a 1981
• Chefe do projeto ETURB-CPM-PR Estudo de Transporte Urbano em Cidades de Porte Médio do Paraná, de 1983 a 1986
• EBTU (Empresa Brasileira dos Transportes Urbanos), de 1986 até o final da empresa, em 1990
• Em 1999, foi contratado para fazer o manual do projeto cicloviário pelo GEIPOT, que foi publicado em 2001. Depois, foi contratado pela FINATEC (Fundação de Empreendimentos Científicos e Tecnológicos), da UnB (Universidade de Brasília)
• Atualmente, Miranda é consultor em Planejamento e Projetos Cicloviários e recém-eleito presidente da UCB

Importante: Conheça a história completa sobre o cicloativismo e políticas cicloviárias brasileiras clicando no link: http://www.escoladebicicleta.com.br/politica.html

Texto de André Piva

Fonte: Revista Bike Action nº 102 - Fevereiro/2009 - Páginas 42-45

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