Vale a pena comprarmos carros para ir trabalhar,
gastando rios de combustível para andar em
primeira ou segunda? Ficamos um carro atrás do
outro, por ausência de transporte coletivo, olhando
os esgotos em que se transformou o rio Tietê por
falta de tratamento e excesso de poluentes. Um
quilômetro de metrô custaria aqui cerca de 40
reais por habitante. Pagamos 30.000 reais para
andarmos a 14 quilômetros por hora. Tem lógica?
Hoje levamos à morte inúmeros jovens que
ocupam com as suas motos os restos de espaço
viário que sobrou, entre um mundo de carros
parados. O absurdo do nosso cotidiano de
consumidor já não está por demonstrar.
Na realidade, pela intensidade de trabalho que
desenvolvemos para produzir coisas inúteis, pelo
volume de coisas descartadas que desperdiçamos,
pelo impacto ambiental de um consumo que não
se sustenta e nos leva a impassses planetários,
pelos custos adicionais para nos curar da
obesidade e outras doenças geradas por consumo
irracional, pelo isolamento social que gera a
acumulação individual de bens, pelos gastos em
segurança e desconforto geral que resultam da
desigualdade e da elitização social, fica cada vez
mais evidente a inadequação dos nossos
mecanismos de regulação, a insuficiência de
deixar simplesmente a corporação decidir por nós.
Os eixos alternativos não resultam de algum
desenho institucional prefabricado, mas de uma
mistura de rejeição dos valores que nos são
impostos com a busca pragmática de alternativas
que funcionem. As pessoas simplesmente se
defendem.
O slow food é um movimento importante. Surgido
na Itália a partir de pessoas preocupadas em ter
uma vida mais agradável ainda que não
necessariamente mais eficiente, o movimento
tornou evidente o fato de que na corrida por nos
tornarmos competitivos esquecemos que estamos
gerando um desperdício monumental do único
recurso absolutamente não renovável, que é o
nosso tempo de vida. A apropriação comercial do
nosso tempo parece ser um progresso porque não
leva em conta como valor o tempo não comercial
da vida. Os exemplos são inúmeros, como o dos
down-shifters nos Estados Unidos, que optam por
uma vida com menos entulho de produtos
comerciais e mais qualidade de vida, e
representam na realidade um movimento cultural
amplo e difuso, mas poderoso.
Muita gente aprendeu a "votar com o bolso", tanto
no plano negativo, deixando de comprar produtos
que são ambientalmente agressivos, como no
plano positivo, privilegiando produtos de
cooperativas, de economia solidária e coisas do
gênero. Na realidade, essa tendência está se
ampliando, e leva muitas empresas a melhorarem
a sua aparência cosmética, o que é positivo, pois
gradualmente abre espaço para novas dinâmicas.
Comércio solidário
Outro eixo de ação consiste na organização da
sociedade em torno de seus interesses, ainda que
pontuais. Em numerosos lugares estão surgindo
ONGs de intermediação financeira, onde a
remuneração das aplicações é razoável, mas
sobretudo o dinheiro é investido de forma
socialmente útil: as pessoas estão simplesmente
desintermediando os fluxos de poupanças,
descobrindo que não precisam necessariamente
sustentar os gigantes burocráticos que são os
bancos modernos.
Há comunidades que simplesmente optaram por
criar a sua própria moeda, como o bairro de
Palmas, em Fortaleza, Ceará. Frente ao arrocho de
crédito que os bancos privados geraram e aos
juros obscenos cobrados, Palmas emite a sua
própria moeda, pois afinal trata-se de um meio de
troca, e não de um valor em si. A experiência deu
tão certo, em termos de dinamização da economia,
que onze municípios estão adotando o sistema.
O comércio solidário já se tornou uma tendência
internacional. Numerosos autores disponibilizam
as suas publicações gratuitamente para fins não
comerciais, na linha de um novo tipo de copyright
chamado de copyleft, na linha dos creative
commons, considerando a criatividade como
patrimônio da humanidade, e reagindo contra a
apropriação privada do conhecimento.
Muitas cidades têm sistemas de trocas de
produtos. Cada bairro pode ter um evento de fim
de semana em qualquer praça, onde são trocados
produtos usados, as inevitáveis bicicletas
ergométricas que entulham as garagens, o
carrinho de bebê que já não comporta a criança e
assim por diante. Uma medida que temos defendido, e que aparece
nas propostas de Juliet Schor e Hazel Henderson,
consiste em cobrar 3 por cento do valor da
publicidade (que de toda forma sai do nosso
bolso), para financiar ONGs que possam fazer
uma avaliação externa e objetiva dos produtos
cujas qualidades são marteladas nos meios de
comunicação. As empresas ainda ficariam com 97
por cento (também do nosso bolso) para dizer que
os seus produtos são ótimos, mas pelo menos
haveria um pouco de opinião independente
Muita gente hoje se dá conta de que os custos das
embalagens saem do nosso bolso. Em muitos
países, a empresa que entrega uma geladeira na
nossa casa leva de volta a embalagem que, em vez
de entulhar a nossa lixeira, vai servir para embalar
outra geladeira. É freqüente também a cobrança
de impostos às empresas que vendem refrigerantes
em garrafas plásticas, incitando-as a buscar
soluções inteligentes. O desperdício é um custo, e
quem gera o desperdício deve carregar o ônus.
A lista de iniciativas desse tipo é muito grande.
Não é o nosso objetivo fazer o seu detalhamento,
e sim mostrar que existe uma nova cultura de
consumo em gestação, que as pessoas estão se
cansando de ser tratadas como retardadas mentais
por uma publicidade debilóide, de trabalhar muito
para sustentar intermediações inúteis, de custear
uma sociedade do desperdício. O consumo
inteligente pode ser um bom ponto de partida. Ele
vai muito além das nossas polarizações
ideológicas, e se prende ao simples bom senso.
Três pontos-chave
O primeiro ponto é que o consumo irresponsável
leva ao colapso do planeta, pois estamos
exterminando a vida nos mares, destruindo o solo
agrícola, exaurindo os lençóis subterrâneos de
água para irrigação, gerando um caos climático
planetário através do desperdício energético, e
assim por diante. Não é sustentável e seremos
vistos pelas gerações futuras como genocidas da
vida na Terra.
O segundo ponto é que esse consumismo
desenfreado não nos deixa mais felizes. Pelo
contrário, ao individualizar as necessidades,
isolamos os indivíduos, atomizamos a sociedade,
o que mata a riqueza da vida cultural. As pessoas
que optam por trabalhar um pouco menos e viver
de forma mais rica estão simplesmente optando
pela inteligência.
O terceiro ponto é revalorizar o trabalho, pois
temos uma parte da sociedade desesperada por
trabalhar demais, e outra por não ter emprego.
Isso mostra a que ponto chegamos em termos de
irracionalidade nas nossas formas de organização.
Quem acha que se sacrifica por ter de trabalhar
deveria conversar um pouco com uma pessoa
desempregada, para entender onde estão os
sacrifícios. A redistribuição do esforço social é
hoje uma necessidade.
O que esses pontos têm em comum é o fato de
apontar para a necessidade de a sociedade retomar
o controle dos seus processos de desenvolvimento
e se apropriar das transformações econômicas e
sociais. Não são sugestões idealistas: a destruição
ambiental e as explosões sociais estão aí, às
nossas portas.
Mais trabalho para viver
Ao reduzir o consumo irresponsável haverá
produto para todos e menos tensões sociais. Ao
produzir de maneira inteligente, entregaremos o
planeta razoavelmente menos destruído aos
nossos filhos. E, ao redistribuirmos o trabalho,
estaremos trabalhando todos, e trabalhando
menos, como diz a fórmula. Teremos mais tempo
para viver. Isso se chama qualidade de vida,
referência bem mais significativa do que o
crescimento do PIB.
As novas tecnologias, ao colocar nas nossas mãos
instrumentos poderosos de extração de recursos
naturais, de produção em massa, de ritmos
acelerados, geram também um novo desafio:
temos de nos dotar das formas de gestão social
correspondentes a esse novo nível de
desenvolvimento das forças produtivas. O vale-
tudo do mercado, o darwinismo da sobrevivência
do mais forte não são suficientes. E, se não
avançarmos rapidamente por processos
democráticos, para a sustentabilidade ambiental e
a redução das desigualdades, haverá seguramente
candidatos para defender regimes duros e fortes,
para "colocar ordem" nas coisas.
Ladislau Dowbor é professor titular no
Departamento de Pós-graduação da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, e da
Universidade Metodista de São Paulo, doutor em
ciências econômicas pela Escola Central de
Planejamento e Estatística de Varsóvia, Polônia.
Artigo adaptado de Consumo Inteligente,
http://dowbor.org, 2007.
domingo, 6 de setembro de 2009
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
DEIXE AQUI SEU COMENTÁRIO COMO CONTRIBUIÇÃO AO DEBATE